O sistema de Bretton Woods, estabelecido no pós-Segunda Guerra Mundial, conferiu aos Estados Unidos um papel central na economia global, com o dólar como moeda de reserva internacional e a hegemonia americana garantida por sua supremacia econômica e militar. No entanto, o “espírito do tempo” que sustentou essa “Pax Americana” começou a erodir.
A decisão dos EUA de abandonar a conversibilidade do dólar em ouro em 1971 (Choque de Nixon) marcou um ponto de inflexão com vantagens e riscos. Embora tenha dado mais flexibilidade à política monetária americana permitindo gastos para sua supremacia militar, também ficou exposto às incertezas do processo político que, com o tempo, poderia abrir caminho para a desvalorização do dólar, questionando sua primazia inquestionável.
Ao longo das décadas, os EUA acumularam déficits orçamentários e comerciais crescentes. No entanto, enquanto o dólar se constituir moeda de reserva internacional o mundo financiará os déficits e o consumo americano, mas por outro lado aponta para uma vulnerabilidade econômica e insustentabilidade política decorrente de longo prazo desse modelo.
As intervenções militares dos EUA em várias regiões do mundo, especialmente após o 11 de setembro (Afeganistão, Iraque), geraram custos econômicos e humanos altíssimos, além de uma perda de credibilidade e legitimidade em parte da comunidade internacional. A percepção de um unilateralismo agressivo tem contribuído para o questionamento da liderança americana.
A reconstrução da Europa e do Japão no pós-guerra, seguida pelo boom econômico de economias asiáticas e, mais recentemente, da China, diluiu o poder econômico relativo dos EUA.
A crise iniciada nos EUA revelou fragilidades sistêmicas do modelo financeiro ocidental e tem abalado a confiança na capacidade de Washington de gerir a economia global.
Esse fator tem contribuído para um “espírito do tempo” de desconfiança em relação à hegemonia americana e à sua capacidade de prover uma governança global estável e equitativa.
A Emergência de uma Nova Ordem Multilateralista e Geopolítica de Resultado
Em contraste com a percepção de declínio da influência dos EUA, a ascensão da China e o fortalecimento do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e agora com novos membros) representam um novo capítulo no “Zeitgeist” geopolítico.
A China emergiu como uma superpotência econômica, com um modelo de desenvolvimento pragmático e focado em resultados. Sua política externa, por vezes assertiva, é frequentemente pautada pela cooperação econômica e pelo investimento em infraestrutura (como a Iniciativa da Nova Rota da Seda), o que a torna atraente para muitos países em desenvolvimento. A China busca redefinir as regras do comércio e do investimento global, desafiando a hegemonia de instituições financeiras ocidentais.
O BRICS como Voz do Sul Global
O BRICS, com sua ampliação, representa uma coalizão de economias emergentes que buscam um papel mais proeminente na governança global. Seu discurso central é o multilateralismo, não como uma forma de enfraquecer instituições existentes, mas de reformá-las para torná-las mais inclusivas e representativas.
Geopolítica de Resultado
O “espírito do tempo” promovido pelo BRICS enfatiza uma geopolítica de resultado, onde a cooperação visa benefícios tangíveis para o desenvolvimento. Isso se traduz em iniciativas como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), que oferece uma alternativa aos mecanismos de financiamento tradicionais, muitas vezes condicionados por políticas econômicas que nem sempre se alinham aos interesses dos países em desenvolvimento.
A busca por alternativas ao dólar nas transações comerciais e financeiras entre os países do BRICS é um reflexo direto do desejo de reduzir a vulnerabilidade às políticas econômicas dos EUA e de promover uma maior autonomia financeira.
Soberania e Não-Interferência
O bloco defende a soberania dos Estados e o princípio da não-interferência nos assuntos internos, contrastando com a percepção de que a política externa dos EUA frequentemente viola esses princípios.
Multipolaridade e Equilíbrio de Poder
A ascensão da China e do BRICS é um sintoma e um motor da multipolaridade no sistema internacional. O “espírito do tempo” atual reconhece que o poder global está se difundindo e que múltiplos centros de influência estão emergindo, o que pode levar a um equilíbrio de poder mais complexo e dinâmico, mas, em tese, mais justo.
O Campo Cognitivo dos Líderes na Nova Ordem
Como isso se reflete nas decisões dos líderes contemporâneos em relação à guerra e à paz?
Líderes de países que historicamente foram aliados dos EUA agora se sentem mais à vontade para buscar parcerias com a China e o BRICS, especialmente em áreas de desenvolvimento econômico. A adesão de novos membros ao BRICS é um claro exemplo disso.
A percepção de que há alternativas aos fóruns dominados pelo Ocidente (como o G7 ou o FMI) empodera os líderes do Sul Global a negociar em termos mais favoráveis, buscando soluções que atendam às suas necessidades específicas.
Foco no Desenvolvimento Econômico:
O “espírito do tempo” de “geopolítica de resultado” influencia os líderes a priorizar o desenvolvimento econômico e a estabilidade social como meios para evitar conflitos internos e externos. A busca por investimentos e infraestrutura, por exemplo, é vista como um caminho mais sustentável para a paz do que a confrontação militar.
Abertura a Novas Narrativas:
Líderes estão mais dispostos a ouvir e adotar narrativas que desafiam a hegemonia ocidental, especialmente aquelas que promovem a cooperação Sul-Sul e a solidariedade entre nações em desenvolvimento.
Há uma crescente relutância em se alinhar com intervenções militares unilaterais ou em apoiar sanções que possam prejudicar suas próprias economias, o que antes era uma prática mais comum sob a influência americana.
Desafios e Complexidades
É importante notar que essa transição não é linear nem isenta de desafios.
A transição para um mundo multipolar é inerentemente complexa e pode gerar atritos e tensões entre as potências estabelecidas e as emergentes. As relações EUA-China, por exemplo, são marcadas por uma intensa rivalidade em diversos domínios.
Embora o BRICS promova o multilateralismo e o desenvolvimento, seus membros possuem interesses nacionais distintos e, por vezes, divergentes, o que exige constante negociação e compromisso.
O “espírito do tempo” contemporâneo
O “espírito do tempo” contemporâneo na geopolítica é inegavelmente marcado pela descentralização do poder e pela ascensão de novas vozes e modelos. A perda de influência dos EUA, embora não signifique um colapso imediato, abre espaço para um cenário mais complexo e multipolar. A China e o BRICS, com sua ênfase no multilateralismo e em uma “geopolítica de resultado” voltada para o desenvolvimento, representam um forte contraponto à ordem unipolar pós-Guerra Fria.
Para os líderes, isso significa operar em um ambiente de mais opções, mas também de maior complexidade. A decisão entre guerra e paz torna-se mais matizada, influenciada por uma teia de interesses econômicos, alianças estratégicas e uma crescente demanda global por um sistema internacional mais justo e equitativo. O desafio é transformar essa multipolaridade em uma ordem mais cooperativa e menos conflituoso. Mas isso só ocorrerá se as novas lideranças, desse novo mundo multiglobal, eleger o diálogo como um novo Construto Estruturante nas relações internacionais.