O dia 23 de setembro de 2025 marcou um ponto de inflexão na diplomacia global. No salão nobre da 80ª Assembleia Geral da ONU, o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva transcendeu a mera retórica política, ecoando como um manifesto por uma nova ordem mundial. Não se tratou apenas de um relatório sobre a política externa brasileira, mas de uma convocação ao mundo para enxergar a necessidade de superar um modelo civilizacional já em colapso. O discurso ressoa como um grito por uma era de “primavera” global, um momento de renovação que exige a reorganização de valores e de novas estruturas para o mundo.
A análise histórica desse evento não pode se desvincular de sua ontogenia, ou seja, de sua origem e desenvolvimento. O discurso na ONU não nasceu no vácuo; é o ápice de um processo que vem se gestando há décadas. As exigências da ordem multipolar, em contraste com a unipolaridade representada na fala do presidente estadunidense Donald Trump, evidenciam a necessidade urgente de mudanças. Os destroços, entulhos e imundícies — como o genocídio em Gaza e tantas outras injustiças — são cicatrizes deixadas por um modelo que priorizou o poder e o acúmulo em detrimento da solidariedade e da sustentabilidade. A crise climática, as desigualdades sociais e os conflitos geopolíticos são sintomas de uma patologia sistêmica.
Do ponto de vista da política social, o discurso de Lula se alinha a uma tradição crítica que questiona as bases estruturais da dominação e da desigualdade. No entanto, vai além da análise puramente materialista. Ao defender a multilateralidade, a soberania das nações, o combate à fome no mundo e a igualdade de oportunidades, o presidente propõe uma engenharia social baseada em princípios éticos, e não apenas econômicos. A rejeição de um mundo dominado por poucos, em favor de uma ordem multilateral, é, no fundo, uma aposta na complexidade e na interdependência — temas caros a pensadores como Edgar Morin.
Morin, hoje com 104 anos e ainda vivo, formulador do conceito e do pensamento complexo, ensina que a realidade não pode ser reduzida a uma única causa ou solução. A nova ordem exigida pelo discurso de Lula é, portanto, uma ordem complexa, que reconhece a multiplicidade de atores e a necessidade de uma ética de ligação que una o particular ao universal.
Seu discurso, mesmo não dito de forma explícita, é uma referência ao “Humanismo Sistêmico”, pois eleva a reflexão a uma dimensão cosmogônica. Trata-se de uma visão que entende a humanidade não como um ser isolado, mas como parte integrante de um todo maior, de um sistema vivo e interdependente. Esse humanismo sistêmico pode ser interpretado, também, à luz das ideias de Humberto Maturana, que nos lembra que a vida é um fenômeno autopoiético — de auto criação e auto-organização — assim como a consciência humana global. Ao advogar pela paz e pela cooperação, o discurso de Lula propõe um caminho para que a humanidade, como um sistema vivo, possa se reorganizar de forma a garantir sua própria sobrevivência e florescimento. É um apelo à responsabilidade e à coevolução.
O discurso pode, de fato, ser considerado um Discurso do BRICS, para um novo ciclo histórico, o da Pós-Modernidade. Ele sinaliza a emergência de um polo de poder que questiona a hegemonia estabelecida e hoje ainda imposta, buscando sempre uma transição para um mundo definitivamente multipolar.
“Não há pacificação com impunidade”, relembrou Lula em sua fala.
A natureza propositiva e condenatória de seu discurso o torna tão impactante. Condena o que foi, mas propõe o que deve ser. A reverberação desse pronunciamento aos homens e mulheres de boa vontade em todos os cantos do mundo nos lembra a potência da palavra quando ela se conecta à aspiração humana mais profunda: a de uma vida digna e pacífica.
A fala de Lula remete ao “Último Discurso” do filme “O Grande Ditador”, pois ambos têm apelos humanistas em meio à escuridão da violência e da dominação.
Considero estarmos caminhando para mais perto de alcançarmos uma “massa crítica consciencial” no mundo, suficiente para reconhecer as condições de uma mudança substancial que já começa a se delinear. A consciência global sobre os desafios e a necessidade de cooperação nunca foi tão alta. O discurso de Lula, portanto, atua como um catalisador, um farol que ilumina o caminho para um salto qualitativo global. Ele não cria a mudança, mas a articula, dando forma e voz a um anseio coletivo que já está cada vez mais maduro para emergir.