O filme Mountainhead (Jesse Armstrong, HBO, 2025) é uma sátira sobre o poder imperial dos investidores, donos de redes sociais, aplicativos e plataformas de inteligência artificial — em suma, dos bilionários de hoje. A graça do filme está nos contrastes que ele apresenta: encastelados em uma mansão nas montanhas, quatro amigos tramam como dominar o mundo, enquanto o mundo real — que eles observam pelos celulares — pega fogo. E suas empresas de comunicação, de IA e de finanças, são gasolina desse fogo.
Cinismo, frieza e desprezo pelo povo, pelos países e pelos governos são suas características marcantes. E eles lidam com elas através da autoindulgência. É um filme que conseguiu – com excelentes atores e uma direção eficiente – criar uma imagem realista desse nicho de pessoas. Ele mostra a subjetividade peculiar da classe dos privilegiados, como eles se blindam da ausência de moral e se dedicam a manter suas posições de poder, perpetuando a pobreza, a ignorância e a violência.
The Economista defende demissões em massa
Lembrei de Mountainhead quando li o artigo “O alto custo de demitir trava a inovação na Europa”, do jornal The Economist publicado no Estadão em 4 de outubro. O artigo vale-se de uma retórica sobre inovação para defender demissões em massa, enfraquecimento dos direitos sociais e trabalhistas, para defender, enfim, o caos social.
A lógica é a mesma que sustenta o enredo distópico do filme. E a ideia principal é verbalizada no confronto entre os personagens Randall Garrett (Steve Carell) e Jeff Abredazi (Ramy Youssef). Jeff é o único do grupo que demonstra alguma consciência e senso de responsabilidade sobre o alcance de sua plataforma de IA, mas Garrett — o investidor — o rebate dizendo que ele “está tentando impedir o futuro”.
No filme, a ironia é uma crítica; em The Economist, é uma retórica cruel. Para defender demissões em massa em nome da inovação, o artigo afirma:
“O problema maior é que a dificuldade de reduzir pessoal em massa — uma realidade da vida corporativa — afasta as maiores empresas europeias de apostas arriscadas em campos inovadores. […] Investimentos em inovações disruptivas exigem a capacidade de contratar muitos funcionários e depois demitir a maioria deles caso os projetos não deem certo. Os altos custos de reestruturação na Europa tornam tais investimentos inviáveis — com um impacto devastador na economia do continente.”
É curioso que o texto se refere exatamente aos setores retratados no filme — os mesmos que, na vida real, usam sua influência não para promover avanços sociais, mas para agravar distorções econômicas e políticas, alimentando ideias extremistas e concentrando poder.
O artigo cita como modelo de prosperidade empresas como Microsoft, Google e Meta, que já demitiram mais de 10 mil funcionários de uma só vez, mesmo com lucros recordes.
“Satya Nadella, CEO da Microsoft, disse que demitir pessoas mesmo quando sua empresa estava prosperando era o enigma do sucesso”, aponta o texto. Satya pode muito bem ter servido de inspiração para um dos personagens de Mountainhead.
Para concluir, o artigo afirma que os europeus tem “apego” a uma forma “acolhedora” de capitalismo e sugere que “ajustes nas regras trabalhistas europeias poderiam estimular a inovação”. Bem, mas eles não falam sobre a qualidade de vida na Europa, ou sobre os bons índices sociais. Também evitam citar a China, que, com um Estado forte, consegue estar à frente em diversas áreas da tecnologia.
Que inovação é essa?
O cinema, com seu enredo sarcástico e instigante, consegue traduzir o absurdo dessa retórica que mascara injustiças sociais sob o manto da busca pela inovação. Não é à toa que a história se passa em uma casa isolada nas montanhas, em um ambiente frio e rarefeito — metáfora da distância entre os bilionários e o mundo real.
Ao defender esse discurso, o The Economist se mostra cínico e descarado, criando subterfúgios para blindar os super-ricos de qualquer responsabilidade moral.
Se o aumento da pobreza e da miséria é aceitável — e até necessário — para que haja inovação, que inovação é essa? São inovações que apenas uma minoria pode usufruir?
Inovação que perpetua desigualdades não é progresso: é retrocesso disfarçado de modernidade. A verdadeira inovação deve apontar para o avanço da humanidade — não para sua destruição.