“Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”, cantam os Racionais MC’s em sua música mais conhecida, não por acaso intitulada Negro Drama. Ontem, o Estado burguês, o Estado neoliberal, o Estado capitalista novamente encontrou o povo pobre e preto que vive aos milhões nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras para praticar aquilo no qual se tornou expert: matar indiscriminadamente as pessoas.
O Estado brasileiro guarda e carrega as marcas da formação histórica, social e econômica do próprio Brasil. Colonialista em sua origem e essência, defende com unhas, dentes, espadas e fuzis a propriedade dos grandes e vê como sujeito apenas o homem branco, reservando aos negros e a outros o tratamento de escravizados, mesmo em tempos de liberdade. É a expressão primeira e última da outra faceta do Estado tal qual o conhecemos no Brasil: o Estado racista, o nosso desavergonhado apartheid, que vigia, persegue e pune a negritude para segurança e privilégio da branquitude proprietária.
O morticínio causado pela ação inapropriada e desequilibrada do governo do Rio de Janeiro, que decidiu enfrentar militarmente uma facção criminosa, mostra o pouco ou nenhum valor que a vida de milhares de moradores daquelas comunidades tem aos olhos de uma classe dominante que vive blindada nos condomínios de luxo — não por acaso, lugar onde também vivem os milicianos que dominam vastos territórios no mesmo Rio de Janeiro e que não têm os seus “negócios” importunados pelo Estado judicial, policial e político fluminense.
Porque, na realidade distópica instalada na cabeça das pessoas através da televisão e de outros meios de desinformação, quem mora no morro é bandido, quem morre em “confronto” com a polícia é traficante e “bandido bom é bandido morto”. A simplificação estúpida da complexidade e da desigualdade sociais facilita e favorece para que o Estado pratique sua única política pública voltada aos pobres e pretos: a violência.
Enquanto a sociedade der ouvidos e balançar afirmativamente a cabeça para “deputados-delegados-coronéis” que apregoam aos berros sua demagogia punitivista, assassina e fascista, novos massacres irão ocorrer. Enquanto prevalecer a lógica de que só existem “direitos humanos para humanos direitos” — e isso não passar de retórica barata que criminaliza a pobreza por simplesmente ser pobreza —, a impunidade seguirá manchando o chão das favelas de sangue, lágrimas e ódio.
Certamente morreram criminosos. Também morreram moradores cujo único “crime” era ser pobre. Morreram policiais jogados em missão suicida. Morreram outros que não terão seus corpos encontrados ou contabilizados. Mas morreu também a perspectiva e a responsabilidade que temos em buscar uma solução que passe pela política. Há quem imagine que a situação não tem mais conserto. Erro crasso! Em sociedades que têm apreço pelo ser humano e pela humanidade, a violência, a criminalidade e o banditismo são vencidos pela combinação de iniciativas estatais que vão muito além de polícia e repressão.
O governador Cláudio Castro deve ser, primeiramente, responsabilizado e processado pela trágica e desastrada ação, mas precisamos discutir a segurança pública conectada a um projeto de desenvolvimento e distribuição de ganhos sociais para a população vulnerável e empobrecida, se de fato quisermos construir um Estado que seja também Nação.