Artigo - O Estado que mata os pretos: a farsa da segurança pública no Rio

Nos últimos dias, o Estado do Rio de Janeiro voltou a ocupar as manchetes nacionais e internacionais, não pelo sucesso de uma política eficaz de segurança pública, mas por promover uma chacina sem precedentes. E, como sempre, a geografia da violência estatal do governo do Rio de Janeiro permanece idêntica: o alvo é o corpo negro, pobre, favelado.

O que se vende como combate ao crime organizado é, na prática, extermínio seletivo patrocinado pelo próprio governo do Estado. Uma política que fracassa em proteger vidas, mas é eficiente para produzir morte — especialmente quando a cor da pele e o endereço da vítima coincidem com o mapa da desigualdade brasileira.

A ONU denunciou ao mundo, mais uma vez, que o Brasil trata a pobreza como crime. E, ao criminalizar a pobreza, transforma a negritude em alvo preferencial do Estado armado.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 83% das pessoas mortas pela polícia são negras, o que também é confirmado pelo Observatório Brasileiro das Desigualdades. No Brasil, a cada quatro horas um jovem negro é morto em ação policial. O que se naturalizou como rotina é, na verdade, um projeto político que define quem pode viver e quem deve morrer. O inimigo declarado não é o crime, é o povo.

Contra os ricos, investigação. Contra os pobres, execução

Enquanto helicópteros atiram sobre a cabeça de trabalhadores que madrugam para pegar o ônibus, o Estado se mostra extremamente cuidadoso com o crime de elite. Quando toneladas de drogas foram apreendidas em aeronave oficial durante o governo Bolsonaro, ou em avião ligado à família de político influente, ou sob responsabilidade de gente próxima ao poder, ninguém morreu, nenhuma comunidade foi sitiada, nenhum blindado aterrorizou o bairro. Contra os ricos, a polícia investiga. Contra os pobres, a polícia executa. Essa seletividade não é acaso: é racismo operacionalizado como política pública.

As autoridades afirmam estar em guerra contra o crime organizado. Mas, se fosse verdade, o Rio seria hoje o lugar mais seguro do país. O que se vê é o contrário: o crime continua lucrando R$ 30 bilhões por ano (FBSP) e se infiltrando em todas as áreas da sociedade, inclusive na Faria Lima. As milícias seguem avançando com apoio político e territorial, a corrupção na segurança não é enfrentada, e a população segue desprotegida. Onde o Estado deveria ser inteligente, é incompetente. Onde deveria ser garantidor de direitos, é ausente. Onde não deveria nunca ser violento, é brutal.

No coração desse modelo está a ideia de que algumas vidas importam mais do que outras. As mortes nas favelas não geram comoção. Abrem os Jornais na TV e manchetes na mídia, durante um breve tempo, para depois desaparecer do noticiário, até novo massacre acontecer. Não provocam CPI. Quando o sangue é preto, o silêncio é branco. E esse silêncio é cúmplice.

Povo rompe a mordaça

Mas a indignação do povo rompe essa mordaça. As vozes que ecoaram pelas redes sociais e ruas são devastadoras:

“A violência do Estado é contra os pobres e os pretos. A gente quer educação, cultura, infraestrutura. Violência só gera mais violência.”

Ao mesmo tempo em que questionam:

“Foram apreendidas toneladas de drogas em aviões de figurões e ninguém morreu. Recentemente a Operação Carbono Oculto executada pelo Governo Federal, em parceria com o Governo de São Paulo, fez mega apreensão, desmontou o concluído empresarial do crime e não teve nenhum tiro ou morte. Então, o que se quer com essa matança?”

Não é pergunta retórica. É acusação e diagnóstico.

Isso não é segurança pública

É preciso dizer com todas as letras: isso não é segurança pública. É administração da morte. É governar com o terror, como forma de controle social e racial dos territórios onde o Estado não garante direitos humanos e sociais. Nenhuma política que produz luto em vez de proteção pode se autodeclarar legítima.

A chacina não é um erro da política de segurança: ela é a política de segurança.

A Constituição de 1988 não autoriza que o Estado seja agente de extermínio. O dever é proteger a vida e reduzir desigualdades. Quando o Estado viola os direitos humanos básicos — o direito de existir — ele rompe o pacto civilizatório. Passa a ser fonte da violência que deveria combater.

Chegamos ao limite. O Brasil precisa decidir se continuará apostando na guerra que só fortalece o crime e destrói vidas — ou se vai construir uma segurança pública baseada em direitos, justiça, inteligência e presença do Estado.

Segurança não é a que mata. Segurança é a que permite viver.

Vidas negras importam

Cada jovem negro assassinado pelo Estado é um futuro arrancado, uma família devastada, uma sociedade mutilada. O que está em jogo é simples e urgente: ou afirmamos que vidas negras importam na prática, ou aceitaremos viver em um país que oficializou o extermínio como método de governo. E isso tem nome na história: barbárie.

O Brasil não pode normalizar a chacina. Um país que autoriza o Estado a matar seus filhos mais pobres e pretos não é um país seguro — é um país que perdeu o direito ao seu próprio futuro.

A política de segurança deve ser permanente, alicerçada na presença qualificada do Estado no território, com:

  • infraestrutura social materializada em habitação, saneamento, calçamento das vias, transporte público;
  • com escola e creche em tempo integral;
  • com saúde da família e preventiva;
  • com esporte, lazer e cultura;
  • com geração de empregos de qualidade.

Essa é a base sobre a qual, o cuidado de cada um e de todos, o combate ao crime, se faz com inteligência, com atuação articulada e coordenada pelo Estado, planejamento, profissionalismo e ciência.

Por isso, é essencial que as propostas legislativas encaminhadas pelo Governo Federal ao Congresso sejam tratadas com celeridade e a sua aprovação autorize constituirmos um Sistema Único de Segurança Pública. A decisão política está ao nosso alcance e agora, nas mãos do Congresso Nacional.


Clemente Ganz Lúcio
sociólogo, assessor do Fórum das Centrais Sindicais, consultor e ex-diretor técnico do DIEESE (2004-2020)

 

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