Artigo - Não adaptar a análise do mundo do trabalho à lógica neoliberal

A dinâmica do mundo do trabalho é tema de grandes debates. E atualmente, sua relação com a tecnologia e o crescente processo de precarização estão no foco.

No entanto, é preciso cautela para não nos deixarmos levar por discursos que alegam que existem transformações disruptivas, sem reconhecer a permanência de estruturas de poder e dominação características do sistema capitalista. O assunto carece de uma abordagem mais marxista e mais desenvolvimentista para não cair em uma acomodação ao neoliberalismo.

Fiquei a pensar sobre o tema após a um debate organizado pela Fundação Maurício Grabois, no 14 de março de 2025, denominado: “Nova configuração das relações de trabalho: o que essa nova configuração alterou nas relações laborais e o que manteve para perpetuar as relações de poder e de classe?”, do qual participei como moderadora.

Minha reflexão baseou-se na busca dos princípios que fundamentam e amarram no campo da esquerda as importantes contribuições apresentadas. Princípios que dialogam e, ao mesmo tempo, somam-se a novas ideias, em uma análise marxista da sociedade e da história — como base teórica — e desenvolvimentista — como perspectiva.

Dois pontos-chave se destacaram no debate:

  1. As supostas mudanças disruptivas no mundo do trabalho promovidas pela tecnologia (incluindo a mentalidade do trabalhador);
  2. E a desregulamentação versus formalização.

Muito se tem falado sobre uma “profunda transformação nas relações laborais”. Contudo, discordo que estejamos diante de uma ruptura ou mesmo de uma reconfiguração.

É inegável que enfrentamos mudanças nas ferramentas produtivas, que por sua vez interferem na organização do trabalho. No entanto, seguimos convivendo com a classe que vende sua força de trabalho e aquela que acumula capital.

Tomemos como exemplo o trabalhador que se inscreve em um aplicativo para atuar como entregador ou motorista: ainda que essa modalidade seja vendida como expressão de “liberdade” e “empreendedorismo”, na prática, está sujeita às regras impostas pelos donos da plataforma, que lucram com a exploração de mão de obra barata.

 

É uma armadilha considerar que o mundo do trabalho passa por uma ruptura, especialmente porque os porta-vozes do mercado utilizam esse argumento para defender mais desregulamentação e retirada de direitos. A reforma trabalhista de 2017, negligenciada como tema central até mesmo no campo progressista — e que deveria ser revista, considerando o caráter golpista do contexto em que foi imposta —, foi sustentada por uma falsa noção de “transformações disruptivas” incompatíveis com a legislação trabalhista.

Avançaremos mais no debate sobre justiça social e na projeção de uma sociedade sob novos parâmetros se, a despeito de toda a parafernália tecnológica, investigarmos as bases que determinam a hierarquização das funções e a distribuição da riqueza.

É fundamental identificar como, travestidas de “modernas”, as contradições de classe permanecem e que o movimento de inovação constante é intrínseco ao sistema capitalista.

Concordo, como foi levantado no debate do dia 14, que houve mudanças no espírito da classe trabalhadora, que, imersa na precarização, tende a rejeitar sua própria identidade enquanto classe. Mas o foco não deve estar na disposição subjetiva do trabalhador, moldada pelas condições adversas a que está submetido. O verdadeiro problema está nessas condições, nos agentes que as impõem e nos interesses que as sustentam. Avaliar apenas o humor da classe trabalhadora, em vez de identificar os interesses que o forjaram, é render-se e adaptar-se ao projeto da classe dominante que perpetua a desigualdade.

Com relação ao ponto “desregulamentação versus formalização”, chamou-me a atenção a afirmação de que os trabalhadores de plataformas rejeitam os direitos garantidos pela CLT devido à natureza conflituosa e até violenta da relação entre patrão e empregado. E ainda, que o vínculo formal se aproximaria de uma nova forma de “escravidão”.

Tal alegação ignora que a legislação trabalhista foi criada justamente para coibir abusos, como resposta à mentalidade escravocrata que predominava na República Velha e no início da industrialização.

É um contrassenso justificar a recusa ao trabalho registrado por conta dos conflitos existentes. Ainda que se considere a peculiaridade de cada relação, está mais do que comprovado que a informalidade — muitas vezes sinônimo de precarização — é, em geral, mais danosa, insegura e degradante para o trabalhador.

A legislação trabalhista, por outro lado, permanece conectada com a realidade nacional, abrangendo múltiplos setores e categorias profissionais. Ela é um marco civilizatório que, a meu ver, deve ser valorizado e atualizado para ampliar direitos — nunca para restringi-los.

Compreender, ao mesmo tempo, o caráter permanente das contradições de classe, apesar das inovações que impactam o ambiente profissional, e o papel do Estado em garantir empregos seguros e com potencial de ascensão social, são princípios valiosos que devem orientar o debate — tanto no campo marxista, no plano teórico, quanto no desenvolvimentista, na prática cotidiana do país.

Acrescento, ainda, a importância vital do movimento sindical na organização dos trabalhadores. Com sua ampla capilaridade e presença concreta na vida dos trabalhadores, por meio de acordos salariais e convenções coletivas, o sindicalismo representa um canal pelo qual o campo progressista e a esquerda podem se conectar com o mundo real.

Contudo, esse movimento, dilapidado pelas reformas liberais iniciadas no governo Temer, ainda em 2025 sente os efeitos das perdas impostas em 2017.

É necessário aprofundar o debate sobre a classe trabalhadora brasileira — não apenas em sua interface com a tecnologia ou no cenário global, mas entendendo sua complexidade e amplitude. Afinal, ela é, essencialmente, o próprio povo brasileiro.


Carolina Maria Ruy
Pesquisadora, jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.

 

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