A inteligência artificial, IA, está a moldar o futuro a um ritmo acelerado e, para a especialista portuguesa Virgínia Dignum, é urgente que o mundo una forças para garantir que essa transformação seja segura, justa e inclusiva.
Professora catedrática na Universidade de Umeå, na Suécia, e parte da Academia Real Sueca de Ciências da Engenharia, Virgínia Dignum integrou o Conselho Consultivo das Nações Unidas sobre IA, criado em 2023, juntamente com mais de 30 especialistas internacionais, com o objetivo de ajudar a ONU a entender como seria possível governar a inteligência artificial a nível global.
Papel transformador da IA
“As conclusões a que nós chegámos foram basicamente constatar ou reafirmar que a inteligência artificial tem um papel transformativo tanto a nível social como a nível de empresas, a nível humano, a nível ambiental”, disse em entrevista à ONU News.
No entanto, alerta, esse papel transformador “poderá, em princípio, ter muitos riscos para muitos atores e situações diferentes se deixarmos a inteligência artificial continuar desregulada, como tem estado até agora.”
A ONU como espaço de diálogo global
A renomada especialista considera que a governança global da IA é essencial para garantir um desenvolvimento que inspire confiança e beneficie tanto as pessoas como o planeta. Para isso, defende que o papel da ONU é central, não necessariamente como entidade reguladora, mas como promotora de diálogo internacional.
“Penso que o papel mais importante para as Nações Unidas é um de garantir o diálogo e o espaço em que possa continuar a haver um diálogo entre todos os países, as regiões, todos os interesses financeiros e interesses públicos, interesses éticos e de desenvolvimento.”
Conclusões do relatório
O relatório final do Conselho Consultivo das Nações Unidas sobre IA da ONU, publicado em setembro de 2024, lança um alerta sobre o “défice de governação global” no domínio da inteligência artificial. Segundo o documento, o atual panorama é marcado por um mosaico incompleto de normas e instituições, com falhas significativas e regiões inteiras excluídas das discussões internacionais sobre a matéria. Esta fragmentação impede uma resposta coordenada aos desafios da tecnologia.
Além da falta de representatividade global, o relatório evidencia o fosso tecnológico entre países, notando que nenhuma das nações em desenvolvimento acolhe clusters de computação de alto desempenho.
Para combater estas desigualdades, é recomendada a aposta em modelos distribuídos e federados de desenvolvimento de IA, bem como na criação de recursos partilhados que promovam a inclusão e mitiguem os enviesamentos associados à falta de diversidade linguística e cultural nos dados usados para treinar sistemas inteligentes.
Oportunidades transformadoras
Apesar das preocupações, Virgínia Dignum é clara quanto ao potencial da IA para transformar positivamente diversos sectores da sociedade.
Entre as áreas com maior potencial, destaca a saúde, a educação, a gestão de infraestruturas e a resposta a catástrofes naturais. “A capacidade, como tivemos de desenvolver a vacina da Covid-19 tão rapidamente, foi porque usámos também ferramentas de inteligência artificial que permitiram excluir e calcular muito mais possíveis vacinas do que o que poderíamos ter feito manualmente.”
Além disso, a IA tem contribuído significativamente para a análise de exames médicos, manutenção de redes elétricas e de comunicações, e poderá ser cada vez mais usada em cenários de risco, como terramotos ou inundações, onde a atuação humana é mais limitada.
Riscos reais
Virgínia Dignum defende, contudo, que os riscos são igualmente reais e não devem ser ignorados. “Os riscos mais reais são riscos de exclusão, de discriminação, riscos de bias e de falta de justiça nas decisões que estão a ser mediadas por sistemas de I.A.”
A estes somam-se as ameaças ligadas à desinformação, impulsionadas pela capacidade da IA de gerar texto, imagens e vídeos falsos com enorme realismo e velocidade.
Medo pode paralisar desenvolvimento da IA
Outro perigo, sublinha Dignum, é o de ficarmos paralisados pelo medo, e assim deixarmos de explorar as capacidades positivas da tecnologia. “O risco de não utilizar a IA porque temos medo dos problemas que aquilo vai trazer” é, para a especialista, tão preocupante quanto os próprios riscos tecnológicos.
A resposta, diz, passa pela vontade coletiva de agir. “A inteligência artificial, por si, não vai resolver esses problemas e não vai também resolver os problemas se não houver um consenso e um interesse político, um interesse social, um interesse humano em tentar resolver esses problemas.”
Exemplos promissores
Para a especialista, já existem exemplos concretos de regiões e países que estão a fazer caminhos promissores na regulação e desenvolvimento ético da IA.
Dignum destaca o caso da União Europeia, que aprovou o AI Act, uma legislação pioneira que define critérios mínimos de qualidade para sistemas de alto risco.
Sublinha também os avanços da Índia, que, embora ainda sem legislação formal, tem intensificado debates estratégicos sobre políticas e estratégias públicas.
Na América do Sul e em África, há igualmente sinais encorajadores, com vários países a desenhar as suas próprias abordagens e, no caso da União Africana, a publicação de um relatório sobre oportunidades e capacidades no continente.
“É importante que haja este diálogo, que aprendamos uns dos outros”, afirma, recusando soluções únicas e defendendo espaços de partilha de experiências e estratégias entre regiões.
E conclui com uma metáfora simples mas poderosa: “Precisamos de regular para garantir que a inteligência artificial, tal como os carros que utilizamos, são garantidos de ter travões e cintos de segurança e airbags.”