A Corporação de Radiodifusão Pública anunciou no início deste mês que será encerrada depois que o Congresso votou para reaver US$ 500 milhões em fundos federais, colocando em risco as operações da PBS e o conteúdo educativo infantil que ela produziu por décadas. Agora, o governo Trump estaria considerando a PragerU como sua alternativa preferida à programação da PBS.
A PragerU (abreviação de Prager University) é uma organização de mídia fundada pelo apresentador conservador Dennis Prager, que recebeu grande parte de seu financiamento inicial de bilionários do fracking, Farris e Dan Wilks. A organização se apresenta como uma “alternativa gratuita à ideologia dominante de esquerda na cultura, na mídia e na educação”, enquanto críticos afirmam que ela distorce propositalmente descobertas científicas e reescreve a história para servir a narrativas da extrema direita. A entidade também ajudou a impulsionar as carreiras de comentaristas políticos da direita radical, como Ben Shapiro e Candace Owens, que têm lucrado em grande parte minimizando os impactos da escravidão e do racismo sobre os afro-americanos.
Cristóvão Colombo
Desde 2023, a PragerU fez parcerias com estados como Flórida, Oklahoma e Montana para incorporar seus vídeos no currículo das escolas públicas. Isso inclui uma série de desenhos animados com duas crianças chamadas Leo e Layla, que viajam no tempo para viver aventuras com várias figuras históricas.
Um desses vídeos ressurgiu recentemente nas redes sociais e mostra um Cristóvão Colombo em desenho animado descrevendo os povos indígenas das Américas e do Caribe como pouco mais que canibais incivilizados. “O lugar que descobri era lindo, mas não era exatamente um paraíso de civilização, e os nativos estavam longe de ser pacíficos… na Europa nós traçamos a linha em coisas como comer pessoas e sacrifício humano. Alguns dos povos nativos de onde acabei de sair fazem essas coisas regularmente”, diz o Colombo animado.
Vale lembrar que Colombo chegou às Américas 14 anos após o início da Inquisição Espanhola, cujas vítimas dificilmente considerariam a Espanha de Fernando II “um paraíso de civilização”. Além disso, Colombo partiu 400 anos depois de cruzados europeus terem canibalizado muçulmanos no cerco de Ma’arra, e europeus ocidentais praticaram o canibalismo “medicinal” por séculos após a morte de Colombo.
Quando questionado sobre a escravidão, o Colombo animado minimiza os horrores do tráfico transatlântico de escravizados. “A escravidão existe desde os primórdios e ocorreu em todos os cantos do mundo, até mesmo entre os povos de onde acabei de vir. Ser levado como escravo é melhor do que ser morto, não?” (E pensar que existe o lema “dê-me liberdade ou dê-me a morte”).
“Histórias alternativas”
Essa linha de raciocínio — de que a escravidão nas Américas não foi muito diferente das formas anteriores de escravidão — é repetida por supremacistas brancos declarados, que promovem o mito de que os irlandeses foram os “primeiros escravos” nos EUA. Essas “histórias alternativas” estão sendo reempacotadas para criar toda uma nova geração de norte-americanos deseducados.
Entre eles estão as crianças da Flórida, que agora aprendem que alguns negros “desenvolveram habilidades” sob a escravidão de tipo chattel que “poderiam ser aplicadas em benefício pessoal”, citando os padrões acadêmicos de estudos sociais do estado em 2023.
Black Lives Matter
O fato de que conservadores ligados ao MAGA sintam a necessidade de criar desenhos animados infantis para promover narrativas pseudohistóricas sobre a escravidão reflete a reação mais ampla contra os protestos do Black Lives Matter em 2020 e contra obras como The 1619 Project. Lutar contra tentativas bem financiadas de desinformação e distorção histórica pela direita inclui revisitar como e por que a escravidão nas Américas foi fundamentalmente diferente da escravidão em circunstâncias anteriores.
É claro que a escravidão existiu por séculos antes do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, em inúmeras sociedades. Mas formas específicas de relações de trabalho (escravos e senhores de escravos, servos e senhores feudais, trabalhadores assalariados e capitalistas) devem ser analisadas dentro do contexto do modo de produção correspondente (escravidão, feudalismo, capitalismo), já que diferentes formas de relações de trabalho podem existir em diferentes modos de produção. A escravidão nas Américas foi tão hiperexploradora e brutal porque ajudou a dar origem ao capitalismo e existiu dentro dele.
Escravidão como forma de produção
A escravidão, como sistema distinto de produção, é centrada principalmente em valores de uso (a utilidade direta de uma determinada mercadoria), ao passo que o capitalismo é um sistema de produção centrado em valores de troca (a proporção em que uma mercadoria é trocada por outras mercadorias).
Do ponto de vista econômico marxista, uma pessoa escravizada é uma forma de capital fixo (um ativo usado repetidamente na produção de um produto), enquanto no capitalismo a força de trabalho em si é mercantilizada pelo valor de troca e é uma forma de capital variável. Embora a escravidão produza valores de uso que podem então ser convertidos em valores de troca, o sistema escravista, em última análise, não organiza a produção para a maximização do valor de troca, ao contrário do capitalismo. A escravidão de tipo chattel nos EUA e em outras regiões das Américas ultrapassou esses limites econômicos.
Escravidão nas Américas
Pessoas escravizadas em sociedades pré-capitalistas como o Egito, a Grécia ou Roma antigas, por exemplo, eram colocadas para trabalhar em projetos estatais, como a construção de pirâmides, estradas e outras formas de infraestrutura que funcionam como valores de uso e não podem ser trocados. Pessoas escravizadas nas Américas, por contraste, foram forçadas a cultivar e colher culturas comerciais, como algodão, cana-de-açúcar e tabaco, assim como a trabalhar na mineração de ouro, prata e diamantes, que podiam então ser trocados no mercado.
As pessoas escravizadas nas Américas eram obrigadas a trabalhar em condições extenuantes a fim de explorar ao máximo o valor excedente de seu trabalho e maximizar o valor de troca das mercadorias que produziam.
Embora seja óbvio que nunca houve um momento na história em que fosse invejável ser escravizado, são essas diferenças que nos ajudam a compreender por que pessoas escravizadas no Sul escravista dos EUA eram obrigadas a trabalhar do amanhecer ao anoitecer (quando não por ainda mais tempo), e por que pessoas escravizadas no Brasil eram infamemente levadas até a morte pelo trabalho — já que os senhores de escravos achavam mais barato simplesmente comprar substitutos do que garantir a subsistência adequada para sua sobrevivência a longo prazo.
Racismo
E foram essas condições horríveis que, por sua vez, cultivaram mitologias racistas e campos de pesquisa racista pseudocientífica, cujo fedor continua a pairar nos Estados Unidos e em outros lugares; mais notavelmente no movimento fascista MAGA, que foi descrito como sendo mais neoconfederado do que neonazista (embora neonazistas, é claro, também estejam incluídos dentro dessa “frente unida da direita”).
Seguindo sua tendência geral de disseminar desinformação e teorias da conspiração mal formuladas, o movimento MAGA está empenhado em um esforço para branquear a história dos EUA nas salas de aula, de forma a satisfazer uma visão de mundo neoconfederada aprovada por bilionários. Donald Trump condenou explicitamente historiadores como Howard Zinn, autor do best-seller A People’s History of the United States, como propagandistas que querem que os estudantes fiquem “envergonhados de sua própria história”.
Nada poderia estar mais distante da verdade, já que a história norte-americana contada por Trump e companhia dificilmente poderia ser considerada como “nossa própria história”, mas sim como uma história narrada por bilionários racistas.
Como trabalhadores norte-americanos, é imperativo que resistamos e rejeitemos esses esforços de branquear a história dos EUA, para que as futuras gerações de estudantes não caiam vítimas ao canto da sereia do movimento MAGA. Ao expor as falácias dessas narrativas pseudohistóricas da direita, podemos ter esperança de continuar o trabalho de eliminar o fedor das mitologias racistas nos EUA, que servem para minar a solidariedade entre diferentes setores da classe trabalhadora norte-americana.
Brandon Chew é jornalista na região metropolitana de Chicago.
Texto traduzido do People´s World por Luciana Cristina Ruy.